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Minhas Senhoras e meus Senhores:
Ao recebermos o amável convite da Dr.ª Inês Amado - que muito nos sensibilizou - ficámos impressionados com a temática em apreço, "BreadMatters", já que, na verdade, o pão ilumina, nomeadamente, a história e a evolução de África, como jugo de opressão e arma de libertação, com forte incidência simbólica num pequeno país como Cabo Verde, sujeito, durante séculos e séculos, a chuvas erráticas e ciclos periódicos de fome, em que a palavra ou a substância pão teve um largo espectro entre a vida e a morte e simbolizou, pela conquista de todos os factores da sua produção, a resistência cultural e a autodeterminação política de ser povo.
É nesse contexto que o primeiro livro, "Pão & Fonema", da trilogia "A Cabeça Calva de Deus", que incorpora também "Árvore & Tambor" e "Pedras de Sol & Substância", procura, emblemática e teluricamente, expressar esta luta titânica de afirmação do homem cabo-verdiano, entre a secura do céu e a cabeça calva da ilha.
Nas ilhas de Cabo Verde, a tradição oral foi sempre alimentada pela simbologia do pão. Assim, quer nas brincadeiras infantis das décadas de trinta e quarenta - será que ainda hoje se perpetuam? - quer nas tradições ancestrais do arquipélago, o pão revestiu-se de um papel significante no imaginário colectivo. Eis três exemplos, qual deles o mais enternecedor… e mágico:
Quando um dos meninos do Monte Sossego, ilha de S. Vicente, fazia uma forte traquinice e temia que ao chegar a casa pudesse apanhar uma valente sova, recorria a um estranho feitiço que anulasse o possível castigo paterno.
Escolhia uma pedrinha e estabelecia com ela o seguinte pacto: "Pedrinha, se eu chegar a casa e for castigado, quer pelo pai quer pela mãe, lanço-te no inferno das brasas do fogão, e ficarás ali a arder eternamente; mas se tu me livrares do castigo, coloco-te dentro do pote da água e ficarás fresquinha para toda a vida." E era convicção da criançada que melhor resultado alcançaria na eliminação do castigo se conseguisse arranjar um bocadinho de miolo de pão para enrolar a pedrinha, entre a diabrice e o veredicto. E tanto maior fosse a dificuldade em arranjar o bocadinho de pão, maior seria a garantia do sucesso.
A ida ao cinema era um dos fascínios dos garotos da minha ilha, mas os parcos tostões de cada um quase nunca permitiam o ingresso nesse mundo fantástico da imagem. A aventura era então resolvida colectivamente: procuravam arranjar entre todos os do grupo os dois mil e cem reis para o bilhete. Todavia, ao preço do bilhete era sempre necessário acrescentar mais uns centavos para a compra de pão e de um pouco de mel. Reunidos estes requisitos, era decidido qual o feliz contemplado que iria ao cinema - escolha teoricamente rotativa, mas que privilegiava quase sempre um entre aqueles que melhor sabiam reinventar as aventuras do filme a que tinha assistido. A restante malta ficava na esquina a contar histórias e peripécias, enquanto dois iam comprar pão e mel. Abriam um buraco no pão, deitavam-lhe dentro o mel e aguardavam até que o contador do filme chegasse. Quando este regressava, repartia o pão por todos os companheiros e, na comunhão, as suas mentes juvenis viam com os olhos da imaginação a história cabo-verdianizada do filme que o amigo ia desfiando, potenciada pelo lento saborear do doce e mágico bocado de pão.
Ainda no quadro tradicional da simbologia do pão como força gregária, contaram-me que algures no interior da ilha de Santiago, quando num casamento os noivos e os padrinhos saíam da igreja e se dirigiam para a casa onde decorreria a boda, vinham ao encontro deles todos os convidados e alguém transportava uma bandeja com um naco de carne assada e um grande pão. O noivo tinha o privilégio e a responsabilidade de repartir por todos os presentes o pão e a carne, em tantos bocadinhos quantas as pessoas que acompanhavam o cortejo, fossem elas dezenas ou centenas, de forma a que ninguém, criança ou adulto, ficasse à margem da cerimónia.
Da tradição oral à literatura escrita, procuremos surpreender numa canção de liberta a palavra pão, unindo o passado, o presente e o futuro, através da afirmação do homem entre o nó de ser e o ónus de crescer.
De pé nu sobre o pão da manhã
Desde a manhã os pésEstão nus ao redor da ilha,Nus de árvore nus de tamborJoelhos de sol E volutas de poeiraNos tornozelosEm movimento
Desde o inícioO tambor dos dedosSob o pão das pedrasO cão das artériaspresona voragemDos calcanhares Que agitamNa terra polvorentao ponteiro dos membrossobre a testa do mundo
Os membros o mundo o meridiano de permeio
O sarilho dos corvos na falésiaAnuncia-nos
À boca do povoadoAo vento gordo sabor a fiambre hálitode pão novo
À beira-mar erguemos as nossas costelasÀ promessa pública do mar EÀ beira-mar navegamosCom mãos menos mãosCom pés menos pésDe proteínas
O povo o poente o pão de permeio
Então Djone! nosso Djonefidje de Bia ou MariaDespe a camisaE vendidaPasseamos tal troncoEntre palmeiras de securaAssimFaluchode orgasmoque caminhaAo som de palmasInstrumentos de cordaviolão & viola
Há sempre o banjo o cavaquinhoQue nos interrompemEntre duas freguesiasE dizemunha & bronzeDa nudezE das árvoresQue crescem no céu da bocaE dos riosque nascem na veia cavaE do sanguedo povo sobre o mapa
Desde o nascer E desde a nascençaOs pés o poente o meridiano de permeio
Caminhando pelos passos do Prof. Dr. Mesquitela Lima, no seu estudo analítico sobre "Pão & Fonema", ele interroga-se sobre a razão do título e esclarece:
"(…) Porquê Pão? Compreende-se perfeitamente a razão do emprego de tal termo. Um dos grandes dramas de Cabo Verde são as secas, crises cíclicas que emolduram a forma de pensamento do homem cabo-verdiano e que o predispõem, pode dizer-se, a um certo fatalismo em relação ao pão do dia a dia. Devido a todo um conjunto de factores de ordem geográfica, as chuvas são erráticas e, devido a outro conjunto de ordem cultural, o homem cabo-verdiano está de tal maneira vinculado à terra - é um agricultor "teimoso" - que mesmo sabendo que não vai chover lança o milho nos campos, na esperança de uma magra colheita. Determinismo ou fatalismo dramático que gira em círculo e que se traduz no binómio milho-chuva que o poeta simboliza ou funde num só termo - pão - e que, ao fim e ao cabo, corresponde à relação binária acima citada: da cópula - milho-chuva - há pão, da não cópula, há fome. Por consequência, no poema, o termo pão conota não só o pão para a boca, a comida do dia a dia, a necessidade primária, mas também a fome a que os Cabo-verdianos se vão habituando, qual fantasma ciclópico ou espada de Dâmocles balançando permanentemente sobre a cabeça do povo, no chão de pedra, mas chão do povo.
Quanto ao emprego do termo fonema, a escolha não podia ser mais acertada. Fonema, em linguística, é o elemento irredutível de qualquer sistema fonético. Linguisticamente falando, fonema não tem muita importância, pois frase é que é fundamental para a denominada compreensão, para a significação. Então porquê fonema e não frase? Fonema, como elemento linguístico, é independente, não implica subordinações ou hierarquias; frase é sempre sujeita a um discurso, com uma estrutura interna que desenvolve normalmente reacções e movimentos. Em Fortes, porém, fonema ultrapassa o elemento sonoro da linguagem, considerado do ponto de vista de uma fisiologia ou de uma acústica. No poema, fonema vem do fundo das goelas, das entranhas da alma, como um grito, como um lamento uníssono de um povo que faz parte integrante há quatrocentos anos e que procura a liberdade e PÃO a que tem direito. Fonema é, no poema, sinal de afirmação de si próprio, como povo, como cultura, como dignidade, como projecção no mundo. Para o povo, fonema é o seu grito de independência, de liberdade, liberdade essencial que vem do não consciente, do não pensado, do não racionalizado, traduzindo ao mesmo tempo um estado de espírito e uma natureza peculiar".
Também no seu estudo interpretativo sobre "Pão & Fonema", a Dr.ª Fátima Fernandes, leitora de Português do Instituto Camões em Cabo Verde, acresce o seguinte:
"(…) E, uma vez que estamos no campo dos símbolos, permitam-nos apresentar um dado curioso - a obra é composta de três partes 1…) Da simbologia dos números, estes levam-nos a atribuir um significado especial à sua presença na obra e a uma compreensão global da mesma. Efectivamente, na palavra pão encontramos três fonemas: 'p', 'ã' e 'o'. Três é universalmente tomado como um número fundamental. O dicionário dos símbolos regista que este número sagrado 'exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Ele sintetiza a tri-unidade do ser vivo ou resulta da conjugação de 1 e 2, produto, nesse caso, da União do Céu e da Terra' (…) Três é a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado. É o acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra, completa a Grande Tríade, e nada mais ajustado ao contexto em que nos apresentamos (…)"
"(…) "Pão & Fonema" é ainda o grito de liberdade de ser substância, palavra e voz. Saciada a fome, o povo canta ao ritmo dos tambores, que na sua plenitude remetem para a tradição africana, e para o momento em que se impôs uma nova linguagem de identidade com África, ao ritmo de festa e de alegria de que só a solidariedade entre os povos é testemunha. É uma das mais antigas formas de comunicação para valorizar e perpetuar a cultura africana e universal. A Árvore, que representa a vida e a natureza, tão adversa à sorte do povo cabo-verdiano, encontra no Tambor a sua metade, também vida, dinamismo, sustentáculo de toda uma cosmogonia (…)"
Para terminar, leremos um outro poema do livro, que procura traduzir ou surpreender o homem, já liberto e responsável, consciente que no universo globalizante do pão, ele não é só gregário, como também actor e autor do seu próprio destino:
Não há fonte que não beba da fronte deste homem.I
Nas rugas deste homemCirculamestradas de todos os pés que emigramQuebram-sevivas! as ondas de todas pátriasAnulam-sede perfil! as chinas de todas muralhas
Na mão bíblicaNo humor bíblico deste homemcrepitam de joelhosDesertos & catedraisOndedeus & demóniojogamnoite e diaa sua última cartadaE do pó da ilha à mó de pedraNão há relâmpagoQue não morda a nudez deste homemNudez de liberta!Que a dor germinaE o espaço exultaE pela ogivaogiva do olhoNão há poenteQue não sejaUma oração de sapiência
Sobre a face deste homemo povo ergueu a praça públicaE os tambores transportamo rosto deste homemAté à boca das ribeirasE ao redoros vulcões respeitamo silêncio deste homem
I I
Não há chuvaQue não lamba o osso de tal homemÀ porta da ilhaDiz o sal de toda a salivaO sol ondula oceanos no sangue deste homem
Oh cereal altivo! vertical & proboAinda ontemantes do meio-diaO vento punha velas na viola deste homemHoje!A violaDe tal dor é sumarentaE projectasobre as almasa seivaDe uma árvore imensaOh oceanos! que ladram à boca das tabernasSe o sangue deste homemé tambor no coração da ilhaO coração deste homemé corda no violão do mundoE os joelhosrodas que vão! hélices que sobemcom ilhas no interior
I I I
Sombras sobre a colina Rosto sobre o povoadoQuandopastor & gado jogam à cabra-cegaE chifres de solprojectamcidadelas no ocidenteO poente galopa a maré-altaE ergue"À taça da noiteSobre as têmporas deste homem"
Oh noite verde! oh noite violadaQue a noite não apagueA memória das cicatrizesE cicatrizes de ontemSejamSementes de hojePara sementeira E floresta de amanhã
Como NoéAs espécies conhecemA sílaba E a substância deste homemNão há milhoQue não ame o umbigo deste homemNão há raizQue não rasgue a carne deste homem
E na fome pública deste homemCrescea ave no voo E a gema na cascaCresceo cabo d'enxada E a cintura da terraCrescea porta do sol E o alfabeto da pedra verdeNão há fonteQue não beba da fronte de tal homemQueA erecção deste homem é redondaE tem o peso da terra grávida
© Corsino Fortes
Todos os poemas foram extraídos de "A Cabeça Calva de Deus", a obra poética de Corsino Fortes, editada por Publicações D. Quixote, 2001.
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